Finalmente chegamos a esta data, perfumada de arroz doce, filhoses e cuscurões, cheia de embrulhos e de luzinhas de Natal, com a casa cheia de família próxima e distante que se reúne. Lido desta forma parece que ambicionei por esta quadra todos os restantes 364 dias do ano, mas é mentira que o tenha feito. Por mim adiaria o Natal "ad aeternum" só para não registar mais nenhum Natal nas minhas memórias. Os que tive bastar-me-iam para o resto da minha vida. Tive natais felizes, cheios de cores e sabores, natais com toda a família, com sorrisos e palhaçadas. Em criança vibrava com ele, hoje não o suporto, embora tenha que admitir, lá no fundo, que ele tem um significado mais importante do que muitas vezes vemos nele: é no Natal que se reúne a família, que a cozinha se enche de tachos, panelas e frigideiras, em que o frio da rua se esgota com o calor das pessoas e do fogão. Já tive melhores natais do que outros, mas de todos eles guardei muitos sorrisos e gargalhadas.
Somos uma família gigantesca e, se na consoada éramos "apenas" 14, no dia 25 esse número multiplicava-se por, pelo menos, 6 ou 7. Era muita gente reunida! E vivia isso na pele, porque era em casa dos meus pais que se desenrolava esse avolumar de pessoas e de parvoíces, brincadeiras tontas ou registos mais sérios, embora a família toda junta seja uma comédia, raros são os que se queixam e fala-se muita coisa idiota, mesmo para todos se rirem.
Depois passam os anos e as brincadeiras de infância acabaram, vieram os copos, as "parties sem motivo aparente" (esse é mesmo o nome que se dava à coisa) e a vida seguia. Um dia, nem sei explicar onde, nem como ou porquê, o Natal deixou de fazer o mesmo "plim" que fazia, deixou de ser tão emocionante e conquistador, passei a viver uma vida dupla em que as perguntas "quando é que te casas?" me começaram a incomodar e me fui afastando discretamente... Quando vivemos assim, deixamos de nos sentir parte do Natal, porque ele não o é em completo, falta uma pessoa ali, falta a pessoa com quem partilhamos a mesma vida e, por essa pessoa ser do mesmo sexo do que eu, existe a obrigatoriedade de a apresentarmos como "amiga" e uma "amiga" não passa connosco a consoada nem o dia de Natal, até porque ela tem família. Esta duplicidade afastou-me da família e sempre me custou imenso que isso acontecesse, porque se vive em dimensões paralelas, entre o que somos na realidade e o que permitimos que nos conheçam.
O ano passado, pela primeira vez, não compareci à consoada de família e fizémos a nossa consoada própria - a da nossa família - em casa, com os miúdos e a família da J., almocei no dia seguinte, sozinha com a minha família. Mesmo assim senti-me parcelada, porque fiquei com um peso na consciência por não ter jantado com os meus pais, principalmente com a minha mãe. E porque, mais uma vez, senti-me sozinha no almoço de dia 25, a tentar enquadrar-me na minha própria família de sangue... Quem já passou pelo mesmo conseguirá entender isto de que eu falo, é uma sensação de ET que nos atinge, porque em nenhum dos lados vamos sentir plenitude, vai sempre faltar qualquer coisa...
Este ano não temos os miúdos connosco, a casa está quente graças à lareira e aos cães. A minha mãe não vai passar o Natal comigo, não vamos ter mais o cheiro delicioso do arroz doce acabado de fazer e da disputa pelo tacho, para o podermos rapar. Acabaram os 1001 petiscos que lhe saiam das mãos, desapareceu todo o calor que nos unia. Sobra o meu pai, os meus irmãos, cunhados e sobrinhos, sobra uma família cujos elos são cada vez mais ténues e transparentes, onde só me sinto enquadrada juntos dos meus sobrinhos. Mais uma vez vou passar o Natal sozinha, meia perdida e isso revolta-me, porque me custa sentir o que sinto, porque nunca consigo conciliar a realidade de dois mundos, porque a presença da J. me vai fazer falta, como sempre. Logo neste Natal, o mais frio de todos, o mais árido e emocionalmente stressante... Não é para sentirmos isto que existem as relações, creio... assim não faz o mínimo sentido, porque nõa há uma partilha total...
Estou triste, desoladoramente triste, porque precisava, este ano, de forças para iluminar o Natal, para apoiar o meu pai e de calor humano que não o meu, que se extingue em situações destas... É nestas alturas que me questiono porque é que as coisas têm que ser como são... Assim doem mais...